Dicotomia humana

H.
3 min readApr 21, 2017

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“Water Show III” por Agnes Cecile, do Deviant Art

A ponte entre dois mundos não é exatamente física. Naturalmente, dentro de cada um, há dois segmentos: um mecânico comandado por outro, superior, austero, ainda frívolo e dissimulado. Um, o corpo; outro, a mente. A ponte entre dois mundos não é exatamente física. Há um ‘eu’ que encobre o outro, que consente em ser ou não ser, que se deixa mentir ou concordar, baseado nessa partícula mais importante e decisória.

O corpo é fruto da mente, sendo esta a condição de existência daquele. É como o dilema da galinha — o que veio primeiro? O ovo ou o animal? Um é a condição para que o outro possa existir, não importando realmente quem surgira primeiro, o que deu-se primeiro. Sem um, não poderá haver o outro. Esse é o princípio da mente: embriões podem não ser ‘conscientes’, mas, quando há sistema nervoso (considerados por alguns como a origem efetiva de vida no útero materno), há consciência. Sem corpo, não há consciência; sem consciência, pode haver corpo, mas não há vida em seu sentido complexo, estrutural, não a se considerar somente as trocas gasosas e a homeostase. Logo, sem a mente, não se tem a existência concreta ou justificativa de uso do corpo.

Essa ponte — que, repito: não é física — é tênue e sensível, sendo difícil para o próprio indivíduo notá-la. As ações são respostas naturais àquilo que a mente calcula. Elas, considerando apenas sua questão física, anatômica, fisiológica, é sempre verdadeira, porque são puramente mecânicas, automáticas; ou seja, justamente porque são respostas. Já a psique é capaz de ocultar, mostrar, sentir e decidir, podendo ser, então, falsa e hipócrita. Ela é quem comanda o corpo. A ponte, por sua vez, pode ser renomeada: gatilho. Qualquer objeto, inanimado ou não, que seja capaz de atingir uma resposta psíquica, provoca o aparecimento desse. É o ponto em que os músculos temporariamente não respondem ao cérebro, o momento do horror ou magnificência, em que os lábios se entreabrem e um grito poderá ou não fluir deles; a hora em que os olhos crescem, com vida, e o corpo treme, inconstante. O gatilho… o gatilho desnorteia. É o desnorteamento que o deixa ciente: há uma diferença entre o seu eu social e o seu eu privado.

O seu eu que se sente sozinho à noite, tendo como única companhia — prazerosa, embora não inteiramente satisfatória — um livro; o seu eu quer se permite algumas lágrimas antes de adentrar o mais profundo sono, o seu eu que finge gostar do trabalho e das pessoas a sua volta… esse seu eu é diferente do eu que simplesmente age; do seu eu que sorri, que diz uma ou outra palavra agradável, que permanece calado, que usa as mãos para fazer tudo que não deseja, que acena, que respira, que suspira, que acaricia a mão que lhe estapeia, seu eu cujos olhos são tão sinceros quanto uma água pútrida, infestada de dejetos, mas que ainda transpassam confiança, pois é isso que são: olhos….

Seus ‘eu’s são distintos, restritos, divididos em figura pública e privada.

Mesmo quando seu olhar assemelha-se a uma poesia, ainda há a distinção — você sente mais do que transmite. Você é poesia, embora não a recite. Mostrar a alma significaria ficar nu e vulnerável, ser enfermo de sinceridade, suscetível a infecções.

É a incoerência entre carne e espírito que constitui a ponte, a resposta e os efeitos.

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H.
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Written by H.

Um pouco mais que um grão de areia, um pouco menos que um cavalo.

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